segunda-feira, 14 de abril de 2008

Miguilim e a experiência da morte 1

Guimarães Rosa é, para mim, inesgotável, daí posso dizer que não conheço toda a sua obra. Do que conheço não é por ter lido o conto, o livro, o comentário do texto, mas porque degustei cada termo, cada imagem, cada dor... Carrego no sangue, no fundo sem fundo, tudo o que sinto nas releituras, discussões contações de estórias, aboios que ouvi, lugares que visitei para melhor apreender o universo roseano. É pouco e penso que em toda a minha vida vai faltar tempo para conhecê-lo mais e melhor.
Neste ano do centenário de nascimento de Rosa (1908-2008) retorno ao "Campo Geral", à estória de Miguilim, como se voltasse à minha infância - nem tão rural, nem tão rude. Sinto no corpo e na alma o drama de Miguilim e a tragédia de Dito e compreendo porque Rosa confessou a seu editor alemão: "de tudo que escrevi, gosto mais é da estória de Miguilim... Por que? Porque ela é mais forte que o autor, sempre me emociona, eu choro, cada vez que a releio, mesmo para rever as provas tipográficas". (RONAI, 1978)
"Campo Geral" é a estória de "Um certo Miguilim", menininho de oito anos, mirrado e franzino, que morava com a família longe... pra lá da "Vereda-d0-Frango-d'Água"... lá no Mutum. Dos quatro irmãos Dito é aquele que lhe é mais próximo. Há um companherismo estabelecido entre eles e Miguilim admira a maturidade e sabedoria de Dito.
A rudeza das relações dos adultos para com as crianças é evidenciada ao longo de todo o conto e a figura do pai é, particularmente, assustadora. As brigas deixam Miguilim sempre muito assustado, frágil e temeroso. Os transtornos da natureza são vistos como avisos da ira divina pelos desatinos dos adultos. Vovó Izidra é poderosa , sobretudo nas rezas, nos conselhos sobre a saúde das crianças e na resolução dos conflitos familiares.
Mãetina, que é uma agregada da família, negra velha com história de alforriada, gosta de cachaça, meio caduca e tido como feiticeira, é uma referência amorosa na vidinha seca de afeto de Miguilim. Vovó Izidra, vasculhava os guardados de Mãetina, catava e queimava os "calunguinhas" que ela entalhava em toquinhos. A vó dizia que eram "santos desgraçados" "bonecos do demo". Uma perigosa mistura de rudeza, ignorância, catolicismo supersticioso e intolerância dirige as atitudes dos adultos e molda os valores das crianças.
A experiência de morte é marcante na miúda vida de Miguilim. Ele elabora a fantasia de sua própria morte. Crê estar tísico e faz até um acordo de tempo de continuar vivo com Deus. As fantasias de Miguilim são guiadas para a morte com medo, mas também como solução. Ele se sente desamparado diante da incompreensão dos adultos e a morte pode se colocar como uma forma de negociar com esta angústia. Mesmo sem clara noção do que fosse a morte, já a percebia como algo negativo, ligado à destruição, ao afastamento. É de se estranhar que uma criança, de sete para oito anos, crie uma idealização da própria morte. Em geral, nesta fase da vida, uma criança experiencia a morte, mediada pela morte de um outro, não necessariamente humano. Todavia, é preciso levar em conta o interessante processo de amadurecimento de Miguilim, sua sensibilidade exacerbada diante das mortes cruéis de bichos que os adultos empreendiam e, particularmente, da insensibilidade deles para com outros viventes não humanos. Quando é de se esperar que a reprodução do processo de dureza da vida rural e da apropriação da noção de morte se dê na iteração com os parceiros, onde o grupo familiar, primário, se põe em evidência, Miguilim toma um atalho e elabora, talvez de modo canhestro, sua própria morte. Como "O doente imaginário" de Moilère, Miguilim adoece com a idéia de que vai ficar doente.
A morte não é uma "coisa", não é objeto e nem comporta nos discursos biológicos da ciência. Quando se tenta circunscrevê-la na linguagem, nada mais se está fazendo do que tentar bloquear a angústia do ser humano diante deste incompreensível. Ela se coloca como alteridade absoluta. Como um eu pode experienciar o não-eu? Assim, só se vive a morte de outrem. Morrer não é um verbo que se conjuga na primeira pessoa do presente do indicativo. A tristeza de Miguilim não é com a suposta doença, nem com a idéia de sua morte próxima. Claro que ele tem medo do nunca-mais, da irreversibilidade, do acordo com Deus ser esquecido... A melancolia de Miguilim é, todavia, com a vida. "Ele bebia um golinho de velhice". Decidir que vai morrer, ter uma doença imaginária, negociar com Deus o melhor dia, são convicções que podem ser interpretadas como exercício de uma liberdade interior, sufocada pelas repressões e desencantamento. É um respiradouro que Miguilim elabora para oxigenar a vidinha em hipóxia.
A explicação da vida é sempre a posteriori. É na busca de alguma compreensão desta angústia que pôde encontrar alívio no ato de negociar com esta própria finitude que encaminhamos esta leitura. Encarar a morte, mesmo que fictícia, mesmo como um recurso do imaginário, pode ser, para Miguilim, uma saída para a imposição mortífera e retornar da águas do Estige, tendo enfrentado um limite, com um sentimento de gestão das pequenas e grandes mortes cotidianas.

Um comentário:

Maju Rezende disse...

Depois de um texto tão lindo, qualquer coisa que eu escreva vai parecer pouco. Ana, tá lindo demais. Aguardarei com ansiedade pelos próximos texto.