terça-feira, 27 de maio de 2008

"A terceira margem do rio" parte 2

Também em “A terceira margem do rio” a matéria da tragédia é a condição humana, que conduz os demais elementos do conto. Os outros; a filha, já casada e agora com um bebê, o irmão e por fim a mãe, desistem, fogem, refugiam-se em outras cidades, mas o filho narrador permanece. A ausência preenche toda a vida deste filho. “Eu permaneci, com as bagagens da vida” [...] “Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos.” (p.29) Para os familiares que se foram para outros lugares a estranheza pode ter sido domesticada, atenuada, afastados que se puseram daquela presença/ausência incômoda. Podem ter integrado, da maneira possível, o drama familiar nas próprias vidas, mitigando a dor e a incompreensão. “A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade.”(p.29)
Não há, todavia, nem consolo, nem luto e nem esquecimento para este filho, pois o morto em vida é insepulto e as perguntas continuam sem a resposta apaziguadora. Ao invés da clareza de um diagnóstico se põe a obscuridade do enigma que barra qualquer tentativa de significação renovadora. Só há o silêncio da permanente lembrança, os não-ditos, as suposições, agora já esmaecidos. Pelo cansaço já não se busca o entendimento mas, uma acomodação, sempre marcada pelo desconforto, torna-se concreta.
Considerando que o mundo cultural humano é constituído de convenções simbólicas, na busca de explicações de significados, a racionalidade criou lógicas binárias. Ou se é, ou não se é, e uma terceira possibilidade é excluída. Dentro desta lógica as coisas e ações passam a ser classificadas como pertencentes ou não pertencentes Mesmo quando os marcadores que as delimitam não estão concretamente presentes, a eficácia simbólica já está estabelecida e prescinde desta concretude.
Assim, se estabelecem as fronteiras, sejam elas físicas, como as aduanas, de um país para outro, levantar muros para circundar as residências, definir lugares diferentes destinados a alimentação e dejetos; quer sejam elas fluidas, como a proibição de penetrar num dado recinto destinado a um ritual, tocar um objeto sagrado, tirar os sapatos para entrar em alguns lugares, lavar-se após vir de um enterro... Diante de tais valores, expressos nos comportamentos humanos e variados de cultura para cultura, deparam-se, os humanos, no entanto, com dificuldades. Toda vez que se estabelecem categorias elas comportam algumas coisas e excluem outras. A questão é o que esta divisão determina. Se a lógica é binária, aquilo que é excluído precisa se integrar em outra categoria. Mas, e quando algum elemento não é totalmente excluído nem integrado? Ou quando ameaça ocupar dois lugares ao mesmo tempo? Quando se comportam como polivalentes e desafiam o sistema classificatório? As linhas das classificações podem até apresentar uma certa flexibilidade mas, não pode afrouxarem-se em demasia sem correr o risco de se desfazem e tornar a classificação caótica e inútil.
Os exemplos vão ao infinito, mas podemos enumerar alguns. Os adolescentes, nem crianças, nem adultos; os lugares de embarque e desembarque, tais como rodoviárias, estações de trens, portos, que são locais de chegada e de partida; os empregados domésticos, participam da privacidade da família, mas são estranhos a ela; as esquinas, lugares dos rituais; a meia noite, nem dia, nem noite.
Pela mesma razão de embaralhamento, indefinição, os monstros e animais de bestiários são sempre apresentados como reuniões de estranhezas, compostos de diversas partes de outros viventes; focinho de porco, asas de morcego, pés de bode... O lobisomem, o diabo, os sátiros, companheiros do deus Dionísio, marcavam sua estranheza pela morfologia, eram homens com pernas de bodes. A impossibilidade de enquadramento, em categorias binárias, faz destes elementos suspeitos e potencialmente perigosos. Atribui-se a eles “mana”, um poder secreto, singular, insólito e perturbador, presença de algo diferente do natural. Pode o “mana” “imantar” objetos e indivíduos e lugares, conferindo-lhes poder de “eleito”, de alguém ou algo especial que se destaca dos demais pelos seus feitos, grandiosos ou estravagantes. O “mana” cria um comportamento social de respeito, em face àquele que o possui e, pelo caráter inexplicável das ações, também suspeito.
Ora, o pai barqueiro apresenta um comportamento inegavelmente estranho, onde se pode reconhecer o “mana”. As hipóteses encaminham suspeitas de pagamento de promessa, loucura, doença contagiosa e “feia” – a lepra e de enviado especial – um Noé. Em todas elas o homem ultrapassou seus limites, lembremo-nos de “O pagador de promessa” e, como tal, é um herói trágico, no sentido que lhe atribuiu os gregos antigos.
A tragédia tem suas raízes num passado e num lugar distantes, mais precisamente no século V a.C. do helenismo, o chamado século de Péricles, época das tiranias áticas e dos regimes fortes. È ali que a tragédia surgiu como gênero teatral de uma dupla origem: cívica e religiosa. O terno tragédia é derivado de “tragos” que significa bode, daí tragédia ser “canto de bodes”, “tragos” = bode + “oide”= canto. Parece que havia, em princípio, um grupo de pessoas que portavam máscaras de bodes e que representavam estar em estado de delírio. As representações trágicas incluíam-se nas festas dionisíacas, juntamente com as procissões.
As questões que as tragédias gregas levavam até a cena eram sempre sobre a condição humana, seus conflitos, seus dilemas e suas paixões, daí a sua atualidade. Põem em jogo as contradições que são a marca do viver trágico. Com as contradições descortinam-se os enigmas e as interrogações a respeito do homem – este ser incompreensível, culpado e inocente, capaz de dominar a natureza e, ao mesmo tempo ser tão frágil, tão inseguro, incapaz de se definir. Na encenação das tragédias o que se passa é mais que uma encenação, mas trata-se de um ritual litúrgico, onde são celebrados os mistérios da vida humana. É posta em cena a natureza humana, com suas relações mundanas e suas interrogações metafísicas.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

"A terceira margem do rio" parte 1

Saúde, padecimento e morte em GUIMARÃES ROSA
"A terceira margem do rio” ( Primeiras estórias)

Ana Lúcia Magela
A narração do conto é na perspectiva do filho. Ele relata a partida do paicumpridor, ordeiro e positivo [...] só quieto”, numa canoinha que mandara fazer, para ficar por anos no meio do rio; numa “terceira margem”: “Sendo que se ele não se lembrava mais nem queria saber da gente, por que, então não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não encontrável? Só ele soubesse”. (p.30) “Seja que quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me-diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação (meu grifo) ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais”. (p. 31) O mistério se coloca aqui como o insondável absoluto, daí guardar íntima relação com o sagrado. Dele não se pode aproximar pelas explicações racionalistas. Toda tentativa de hipótese explicativa sempre será reducionista. O mistério é uma concha fechada, hermética, lugar onde a razão não consegue lançar nenhum raio de luz esclarecedor.
Mas, há tentativas de explicar comportamento tão esdrúxulo: “Todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira [...] Sou doido? Não. Na nossa casa a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos não se condenava ninguém de doido. Ou, então, todos.” (p.31) “Só uns achavam o entretanto de poder ser também pagamento de promessa, ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele” (p.28) “na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim do mundo, diziam que o nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, portanto, a canoa ele tinha antecipado”; (p.31)
A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia”. (p.28)
Diante do absurdo incompreensível, tentam-se as medidas práticas que, acreditavam, demovedoras de tão infeliz intento: “o pessoal nosso experimentou de ascender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se clamava”. (p.28) A mãe encomendou os esconjurados do padre; os soldados, com apelo de força; foram até mesmo os “homens do jornal” que tentaram fotografar... Nada... “não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão”. (p.29)
O por que do intento? A pergunta sempre aberta, busca invadir a ordem do mistério mas, nenhuma mediação racional explicativa satisfaz. O que se pode é andar em círculos, ao redor deste enigma, buscando, cada vez, se aproximar mais, sem jamais cercá-lo, porque ele sempre vai escapar.
A idéia mítica encontra guarida pela vizinhança do mistério: Tão diversa a atitude de um pai “ordeiro e cumpridor”, na vida do dia-a-dia, nos faz perguntar que contradições vivia este homem, para deixar a família e imobilizar-se nesta terceira margem de um rio? A especulação de que seria ele um Noé, pré-avisado de um dilúvio, reunindo em si toda uma fadiga cósmica, desencantado e desejoso de um repouso absoluto, numa morte em vida, nos conduz a uma possibilidade compreensiva do mito. Se o dilúvio abriu caminho para uma recriação e regeneração da humanidade, seria este intento uma forma de regresso ao útero da natureza, o retorno a um universo caótico e pré-cosmico, embrionário, para um enfrentamento do limite, como uma gestão da morte?
O valor dos mitos é confirmado nos rituais. Os mitos sempre incorporam o paradoxo, nada é harmônico, há sim uma permanente busca da harmonização, sempre fugidia, uma “harmonia-conflitual” onde, integrar a morte no cotidiano é uma forma contraditória de enfrentá-la.
Para vários povos antigos o tempo primordial “illud tempus”, em que pela primeira vez o mundo passou a existir, pode ser recuperado, vale dizer, recomeça como tempo sagrado. Reatualizar o ritual de um começo está presente em todos os calendário sagrados, mesmo nas sociedades contemporâneas.
A paralisia do conto é marcada pela circularidade. A presença/ausência é impossível de ser esquecida. “E nunca falou mais nele. Só se pensava. Não de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para despertar de novo, de repente com a memória, no passo de outros sobressaltos.” (p.30) O pai nem parte de vez, nem volta. Fica no estar sendo, num presente eterno e absurdo. A dimensão da estranheza é prolongada, interminável, mesmo que não se fale mais do pai, não se busque mais explicar a estultice do comportamento dele, também dele não se esquece. É o que pode caracterizar o rito de passagem em sua fase de “margem”, vale dizer, flutua entre dois mundos. A “terceira margem” é uma criação literária interessante, pois situa uma transitoriedade que se eterniza e numa “margem” impossível! Onde só existem duas, Guimarães Rosa cria uma absurda terceira.
O antídoto do tempo pode ser encontrado nos atos de voltar-se para dentro, como forma de embargo, de paralisia. Desconectar-se do mundo, das rotinas cotidianas, pode ter relação com as figuras que remontam à vida fetal, como o resgate de um arquétipo ou do atávico. Destacam-se, dentro desta interpretação, as imagens de proteção e interioridade da gruta, da concha, do ovo, onde se pode ver Alice no país das maravilhas, Gúliver, O Pequeno Polegar. O lugar de escolha é “estar dentro de”, a engulição e o encaixe. Ora, na canoa, só cabe o canoeiro, foi encomendada e feita, sob medida, para só comportar um navegador. Na análise destes arquétipos encontra-se a valorização da simbologia do repouso, buscado no berço, no sepulcro, na caverna, na morada nas águas, na descida, na noite e na morte.
Estar sobre as águas e não ir para lugar nenhum, demarca uma intenção desconhecida, mas que pode ser interpretada como de desafio ao tempo, tornar-se senhor dele, ou a eufemização do tempo que passa – não passa para o pai canoeiro, é vago, indefinido, ainda não posto em movimento, como precedendo o cosmo, a inércia, onde vai fundar-se um começo sagrado, uma cosmogonia.
O pai “Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar” (p.28) Já não há como diferenciar o canoeiro da canoa. Continente e conteúdo se amalgamaram ao longo do tempo...

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Sorôco, sua mãe, sua fiulha - a estranheza da loucura 2

Para a viagem das duas loucas, até o manicômio de Barbacena, observa-se uma real preocupação com as medidas práticas como segurança, alimentação, boas condições para a longa viagem, todavia, sob os obséquios e cuidados técnicos se esconde o medo da diversidade, do diferente e de sua alteridade. Separar o “doente” é uma medida social higienista. “O propósito principal, então, das crenças e práticas higiênicas é fixar modelos para o comportamento das pessoas, impedindo que transgridam limites e desorganizem a ordem simbólica[...] os microorganismos patogênicos ameaçam mais a vida social que a vida orgânica, e, são objeto de ritos purificatórios.” (Rodrigues,1975, p.134) Daí a necessidade de que a ordem assuma seu papel hegemônico, marque presença preponderante e rechace a desordem. Isto faz o diferente ainda mais diverso e, conseqüentemente, objeto de exclusão. “Não é improvável que possamos encontrar um paralelismo acentuado entre a tendência a identificar, no corpo humano, o ‘vil’ e o ‘nojento’ com o ‘inútil’, e a atitude pragmática do sistema capitalista, que procura valorizar no corpo o que tem de aproximado aos instrumentos e ferramentas.” (Rodrigues, 1975,p. 159)
É esperado, na apreciação de uma melodia que haja uma combinação de sons captado pelo ouvido humano como uma sensação agradável. Tal sensação deve elevar o espírito, conduzir ao êxtase, através da alegria ou da catarse. Quando a melodia une-se à palavra estabelece-se um sentido que precisa ser compreendido, vale dizer, exige coerência para que o receptor possa decodificá-la. A cantiga da filha “não vigorava certa nem no tom nem no dizer das palavras – o nenhum”. A avó segue a cantiga da neta, “que ninguém não entendia”. É um desafio não intencional, mas que, a contragosto, se põe entre elas e povo circundante, uma comunicação que não se decodifica. Para os presentes a cantiga era “o nenhum”, a ausência de qualquer possibilidade de laço social, fora de qualquer alcance.
“A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada de tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam”. (p.14) As duas loucas se diferem dos demais também pelos trajes. Vestem-se e têm comportamentos sui generis, chamam atenção, embora não quisessem “dar-se em espetáculo”. A velha trajando-se mais discreta, toda de preto, com seu chalé preto, mas “batia com a cabeça, nos docementes.” Ambas portam no corpo, quer pelas indumetárias, quer pelo comportamento, aquilo que os gregos definiram como estigma. “Sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresenta”. Goffmam 1963, p.11) A filha tem um ar sobrenatural “que nem os santos e os espantados”. Esta última traz nas vestes “matéria de maluco”, trapos, tiras, roupa sobre roupa, panos e papéis amarrados ao corpo. Cabelos desgrenhados que todos reconhecemos como assinatura da sandice!
Diversas no trajar, diversas na idade, todavia se assemelhavam. Unidas neste padecimento comum, alardeiam a alteridade da doença mental. O rosto da moça é a contradição posta: “a cara dela era um repouso estatelado”. De uma loucura que subverte, seu rosto atônito é uma máscara de não-presença. Ela não quer se dar em espetáculo, porque não está ali. Quais seriam as “outroras grandezas impossíveis”? Quem poderia responder? Senão alguém também mergulhado nestas águas, como a avó? Quem sabe vem daí esta semelhança entre as duas? Daí, quem sabe, este olhar da avó de um “amor extremoso”, este “encanto de pressentimento muito antigo” que todos viram e não entenderam?
“De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi-se sentar no degrau da escadinha do carro. – ‘Ela não faz nada, seo Agente...’ – A voz de Sorôco estava muito branda: - ‘Ela não acode, quando a gente chama...” (p.15) Elas são “doidas mansas”, Sorôco sabe disto. Necessárias as precauções de segurança? Grades nas janelas do vagão? Para impedí-las de quê? De cantar? Ou para delimitar o estigma da desordem? A falsa segurança contra a ameaça simbólica! .
“ Agora mesmo, a gente só escutava era o arcoçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava [“...] A tristeza do canto incompreensível podia doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, mas pelo antes, pelo depois”. A dor que se derrama no canto incompreensível agora pode ser de todos, sem marca de razão... Não é preciso “jurisprudência de motivo nem lugar” (p.15) Esse por-se em comum é a vivência do trágico, no sentido grego, dionisíaco. “Dionísio é, efetivamente, uma espécie de interposição entre a natureza e a cultura, ao permitir, ao mesmo tempo, o acesso ao instintual e o aprofundamento da socialidade” (Maffesoli,1985, p.140) É um estado de “religare” um “cimento social” que se mostra em toda sua potência e vitalidade. Já não é só uma chusma de gente, mas uma socialidade que descobre a forma de enfrentar coletivamente o desafio do limite e a dor é agora de todos.
O embarque é rápido que Sorôco nem espera sumir, nem olha, é uma imagem desolada, uma tristeza esmagadora... “Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso” Sorôco é a imagem da desolação muda,“oco”. Esvaziado como quem parou de ser. Há uma emoção de lagrimejamento nos presentes “vistas neblinadas”. As palavras que buscam consolar estão soltas ao vento, não há consolo possível nos ditos, mas, nos não ditos...”De repente, todos gostavam demais de Sorôco.” Percorre o âmago daquela comunidade um estado de ser-estar-junto, nunca dantes suspeitado. Um estado proxêmico de coesão que não é da ordem da consangüinidade, nem da pena, mas do religare, da proxemia. Ali, naquele momento e lugar, em face do evento que foi presenciado e das circunstâncias em que se deu, estabelecem-se relações afetivas que os seres humanos desenvolvem a partir de um território de pertencimento, seja este território espacial ou simbólico. Uma “socialidade de base” como denomina Maffesoli, “o querer-viver espontâneo que, através de representações imagéticas, reordena o tempo e o espaço, permitindo o enfrentamento coletivo do trágico do tempo que passa e a angústia da finitude.” (1988,p.113) Um estado de ser-estar-junto, sem obrigatoriedade, sem finalidade disciplinada, pela solidariedade orgânica, imposta pelas rotinas da vida cotidiana, em posições moralista de um dever-ser. (Durkheim,1986) Mas sim, manifestada no próprio ato de pertencimento, uma sensibilidade coletiva. “essas redes de amizade, que não têm outra finalidade senão reunir-se sem objetivo, sem projeto específico e que cada vez mais compõem a vida quotidiana dos grandes conjunto” (Maffesoli,1987,p.35)
Sorôco está voltando para casa como se fosse para longe, sem a mãe e sem a filha, mas com toda a cidade que o acompanha. As palavras de conforto são dispensáveis... o canto as substitui: “ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a mesma cantiga, mesma de desatino, que as duas tinham cantado [...] E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, [...] os mais de detrás quase corriam, ninguém deixasse de cantar” (p.16) Mais, muito mais que de dó de Sorôco, o povo canta com ele, a mesma canção destrambelhada das duas loucas. Como um coro de ditirambos que, no teatro grego clássico, declamavam e cantavam, em delírio, para louvor do deus Dionísio. Ali Sorôco é o cantor principal, o corifeu, acompanhado de todas as outras vozes, “ninguém deixasse de cantar. “o coro como uma muralha viva de que se cerca a tragédia a fim de se separar do mundo real e salvaguardar seu domínio ideal e sua liberdade poética [...] o coro ditirâmbico é um coro de transformados que perderam totalmente a lembrança de seu passado civil” .(Nietzsche, p.59) “O ditirambo “oferece o espetáculo de uma comunidade de atores inconscientes que se contemplam a si mesmos, metamorfoseados entre os outros” (p.66) Nesse canto de possessão dionisíaca, todos se irmanam para “levar Sorôco para a casa dele[...] ia até aonde que ia aquela cantiga” (p.16). Não importa mais que a cantiga seja “nenhum”, não tenha tino, nem seja compreendida – ela é agora compartilhada. Há uma irresistível identificação entre todos os que cantam com Sorôco, numa sabedoria dionisíaca do enfrentamento dos limites, como um retorno à natureza. Há uma real preocupação com as medidas práticas como segurança, alimentação, boas condições para a longa viagem, todavia, sob os obséquios e cuidados técnicos se esconde o medo da diversidade, do diferente e de sua alteridade. Separar o “doente” é uma medida social higienista. “O propósito principal, então, das crenças e práticas higiênicas é fixar modelos para o comportamento das pessoas, impedindo que transgridam limites e desorganizem a ordem simbólica[...] os microorganismos patogênicos ameaçam mais a vida social que a vida orgânica, e, são objeto de ritos purificatórios.” (Rodrigues,1975, p.134) Daí a necessidade de que a ordem assuma seu papel hegemônico, marque presença preponderante e rechace a desordem. Isto faz o diferente ainda mais diverso e, conseqüentemente, objeto de exclusão. “Não é improvável que possamos encontrar um paralelismo acentuado entre a tendência a identificar, no corpo humano, o ‘vil’ e o ‘nojento’ com o ‘inútil’, e a atitude pragmática do sistema capitalista, que procura valorizar no corpo o que tem de aproximado aos instrumentos e ferramentas.” (Rodrigues, 1975,p. 159)
É esperado, na apreciação de uma melodia que haja uma combinação de sons captado pelo ouvido humano como uma sensação agradável. Tal sensação deve elevar o espírito, conduzir ao êxtase, através da alegria ou da catarse. Quando a melodia une-se à palavra estabelece-se um sentido que precisa ser compreendido, vale dizer, exige coerência para que o receptor possa decodificá-la. A cantiga da filha “não vigorava certa nem no tom nem no dizer das palavras – o nenhum”. A avó segue a cantiga da neta, “que ninguém não entendia”. É um desafio não intencional, mas que, a contragosto, se põe entre elas e povo circundante, uma comunicação que não se decodifica. Para os presentes a cantiga era “o nenhum”, a ausência de qualquer possibilidade de laço social, fora de qualquer alcance.
“A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada de tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam”. (p.14) As duas loucas se diferem dos demais também pelos trajes. Vestem-se e têm comportamentos sui generis, chamam atenção, embora não quisessem “dar-se em espetáculo”. A velha trajando-se mais discreta, toda de preto, com seu chalé preto, mas “batia com a cabeça, nos docementes.” Ambas portam no corpo, quer pelas indumetárias, quer pelo comportamento, aquilo que os gregos definiram como estigma. “Sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresenta”. Goffmam 1963, p.11) A filha tem um ar sobrenatural “que nem os santos e os espantados”. Esta última traz nas vestes “matéria de maluco”, trapos, tiras, roupa sobre roupa, panos e papéis amarrados ao corpo. Cabelos desgrenhados que todos reconhecemos como assinatura da sandice!
Diversas no trajar, diversas na idade, todavia se assemelhavam. Unidas neste padecimento comum, alardeiam a alteridade da doença mental. O rosto da moça é a contradição posta: “a cara dela era um repouso estatelado”. De uma loucura que subverte, seu rosto atônito é uma máscara de não-presença. Ela não quer se dar em espetáculo, porque não está ali. Quais seriam as “outroras grandezas impossíveis”? Quem poderia responder? Senão alguém também mergulhado nestas águas, como a avó? Quem sabe vem daí esta semelhança entre as duas? Daí, quem sabe, este olhar da avó de um “amor extremoso”, este “encanto de pressentimento muito antigo” que todos viram e não entenderam?
“De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi-se sentar no degrau da escadinha do carro. – ‘Ela não faz nada, seo Agente...’ – A voz de Sorôco estava muito branda: - ‘Ela não acode, quando a gente chama...” (p.15) Elas são “doidas mansas”, Sorôco sabe disto. Necessárias as precauções de segurança? Grades nas janelas do vagão? Para impedí-las de quê? De cantar? Ou para delimitar o estigma da desordem? A falsa segurança contra a ameaça simbólica! .
“ Agora mesmo, a gente só escutava era o arcoçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava [“...] A tristeza do canto incompreensível podia doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, mas pelo antes, pelo depois”. A dor que se derrama no canto incompreensível agora pode ser de todos, sem marca de razão... Não é preciso “jurisprudência de motivo nem lugar” (p.15) Esse por-se em comum é a vivência do trágico, no sentido grego, dionisíaco. “Dionísio é, efetivamente, uma espécie de interposição entre a natureza e a cultura, ao permitir, ao mesmo tempo, o acesso ao instintual e o aprofundamento da socialidade” (Maffesoli,1985, p.140) É um estado de “religare” um “cimento social” que se mostra em toda sua potência e vitalidade. Já não é só uma chusma de gente, mas uma socialidade que descobre a forma de enfrentar coletivamente o desafio do limite e a dor é agora de todos.
O embarque é rápido que Sorôco nem espera sumir, nem olha, é uma imagem desolada, uma tristeza esmagadora... “Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso” Sorôco é a imagem da desolação muda,“oco”. Esvaziado como quem parou de ser. Há uma emoção de lagrimejamento nos presentes “vistas neblinadas”. As palavras que buscam consolar estão soltas ao vento, não há consolo possível nos ditos, mas, nos não ditos...”De repente, todos gostavam demais de Sorôco.” Percorre o âmago daquela comunidade um estado de ser-estar-junto, nunca dantes suspeitado. Um estado proxêmico de coesão que não é da ordem da consangüinidade, nem da pena, mas do religare, da proxemia. Ali, naquele momento e lugar, em face do evento que foi presenciado e das circunstâncias em que se deu, estabelecem-se relações afetivas que os seres humanos desenvolvem a partir de um território de pertencimento, seja este território espacial ou simbólico. Uma “socialidade de base” como denomina Maffesoli, “o querer-viver espontâneo que, através de representações imagéticas, reordena o tempo e o espaço, permitindo o enfrentamento coletivo do trágico do tempo que passa e a angústia da finitude.” (1988,p.113) Um estado de ser-estar-junto, sem obrigatoriedade, sem finalidade disciplinada, pela solidariedade orgânica, imposta pelas rotinas da vida cotidiana, em posições moralista de um dever-ser. (Durkheim,1986) Mas sim, manifestada no próprio ato de pertencimento, uma sensibilidade coletiva. “essas redes de amizade, que não têm outra finalidade senão reunir-se sem objetivo, sem projeto específico e que cada vez mais compõem a vida quotidiana dos grandes conjunto” (Maffesoli,1987,p.35)
Sorôco está voltando para casa como se fosse para longe, sem a mãe e sem a filha, mas com toda a cidade que o acompanha. As palavras de conforto são dispensáveis... o canto as substitui: “ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a mesma cantiga, mesma de desatino, que as duas tinham cantado [...] E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, [...] os mais de detrás quase corriam, ninguém deixasse de cantar” (p.16) Mais, muito mais que de dó de Sorôco, o povo canta com ele, a mesma canção destrambelhada das duas loucas. Como um coro de ditirambos que, no teatro grego clássico, declamavam e cantavam, em delírio, para louvor do deus Dionísio. Ali Sorôco é o cantor principal, o corifeu, acompanhado de todas as outras vozes, “ninguém deixasse de cantar. “o coro como uma muralha viva de que se cerca a tragédia a fim de se separar do mundo real e salvaguardar seu domínio ideal e sua liberdade poética [...] o coro ditirâmbico é um coro de transformados que perderam totalmente a lembrança de seu passado civil” .(Nietzsche, p.59) “O ditirambo “oferece o espetáculo de uma comunidade de atores inconscientes que se contemplam a si mesmos, metamorfoseados entre os outros” (p.66) Nesse canto de possessão dionisíaca, todos se irmanam para “levar Sorôco para a casa dele[...] ia até aonde que ia aquela cantiga” (p.16). Não importa mais que a cantiga seja “nenhum”, não tenha tino, nem seja compreendida – ela é agora compartilhada. Há uma irresistível identificação entre todos os que cantam com Sorôco, numa sabedoria dionisíaca do enfrentamento dos limites, como um retorno à natureza.