sábado, 19 de abril de 2008

Miguilim e a experiência da morte -2

Miguilim e a experiência da morte - 2

É na subida para a Lage da Ventação, onde a coruja-batuqueira tinha uma toca, onde o vaqueiro Jé ficava escondido com a Maria Pretinha, o micro-estrela fujão estava em tempo de ser espatifado pela cachorrada e a criançada corria para salvar o mico que “o Dito pisou sem ver num caco de pote, cortou o pé: na cova-do-pé, um talho enorme, descia de um lado, cortava por baixo, subia da outra banda.” Foi um corre-corre: Rosa carregou Dito e lavaram o pé numa bacia... muito sangue. Vó Izidra colocou sobre a ferida talo de bálsamo e amarraram com panos apertados. Dito ficou deitado na rede no alpendre. Pedia a Miguilim que reportasse para ele, imobilizado na rede e depois no catre, tudo o que se passava na casa, no curral, com os agregados, no presépio, porque já era época de se armar o presépio, incumbência que cabia à Vovó Izidra. Armar o presépio era um acontecimento: “Todos os anos, o presépio era a coisa mais enriquecida, vinha gente estranha dos Gerais, para ver, de muitos arredores.” Os personagens do presépio, Vó Izidra guardava numa canastra que carregava para onde ela ia e eram reunidos desde sua mocidade: os reis magos, pastores, os patinhos, peixes, urso-branco, rã, cágado, foquinha, muitos bichos e na manjedoura Nossa Senhora, São José e o menino Jesus. Dito, assim como todas as crianças, queria ver a montagem do presépio, mas pulando com um pé só, doía e Vó Izidra trazia algumas coisas para ele ver. Os irmãos menores, que podiam participar da arrumação do presépio, nada entendiam e Tomezinho ficava na porta do quarto onde Dito agora estava :”Vocês não podem ir ver presepe, vocês então vão para o inferno!
Dito piorava “endefluxou” outra vez e chorava muito com dores de cabeça e nas costas. Vovó Izidra, que agora dormia no quarto junto com o Dito, cuidava com folhas santas amassadas. O agregado Luisaltino foi, à cavalo, na casa de um fazendeiro que vendia remédio para dor... Miguilim ficava a maior parte do tempo ao lado de Dito, contando estórias compridas que inventava. Saia e voltava com as novidades, relatando os acontecidos.
Não poder participar do andamento dos ocorridos é o princípio da perda para Dito, Vovó Izidra, Miguilim, todos da casa, vizinhos e agregados. Miguilim se coloca, nesta situação, como resistência ao desfecho que vai ocorrer. Enquanto reporta os fatos que Dito não pode mais presenciar, busca conservar a ordem, dentro da desorganização que cada vez mais se avizinha. Ordem que ele acredita temporariamente alterada pelo acidente e a piora da saúde do irmão. Miguilim acompanha a sina de Dito, desde o acidente, com o corte no pé, o agravamento da doença, a agonia e a morte, sem possibilidade de acreditar no que se desenrola diante de seus olhos infantis. Já Dito percebe que está sendo conduzido ao fim inexorável: “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!... E o Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vierem, puxaram Miguilim de lá.” Quando o embate entre vida e morte se afrouxa e abre espaço para que impere o fim, a desordem, Dito não é um ser humano desesperado. Ele percebe a sua terminalidade como um ser trágico, entregue ao seu destino, enquanto Miguilim encarna o drama; não acredita que a desordem triunfe, ela só pode ser transitória! Pode ser controlada! Pode ser controlada! " 'Mãitina! Faz todos os feitiços, depressa, que você sabe...’ Mas aí, no vôo do instante, ele sentiu uma coisinha caindo em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais adiantava. [...] Drelina, branca como pedra de sal, vinha saindo: - Miguilim, o Ditinho morreu...” Miguilim, devastado pela dor da perda do irmão mais querido, sentado no chão, num canto do quarto, olha os preparativos do corpo de Dito. Observa o carinho com que a mãe segura, durante o banho, na bacia, o pezinho machucado do filho morto, como se ele ainda pudesse sentir dor: O enterro ia ser no cemiteriozinho na Vereda do Terentém, um dia inteiro de viagem. Mãitina fazia farofa de carne, cozinharam mandioca para os homens que iam levar Dito até o cemitério, mataram até um porquinho, porque a carne seca era pouca e iam também levar um garrafão de cachaça. O corpinho do menino foi embrulhado numa colcha de chita, como a mãe queria – um arremedo de um pallium que dissimulava a nudez da morte e que, na pobreza, estava mais próximo de uma mortalha. O corpo fora enfeitado com alecrim e pendurado numa vara comprida, em cada ponta um carregava.
A vó Izidra, depois que saiu o último homem, fechou a porta. Ali se estabelecia o primeiro momento do rito de separação. Dito, agora, não mais fazia parte dos vivos. A transição e a porta fechada se punham como uma borda, a estabelecer limite no trabalho simbólico de desligamento.
Miguilim está esvaziado, cansado do sofrimento, do choro, da angústia... e ele é só um menininho! Passam-se os dias em que ele não sabe se é noite ou dia: “Uai, Mãe, hoje já é amanhã?!” Ainda não crê mesmo que Dito não vai voltar, que agora é o nunca mais. Quer um milagre, voltar o filme do tempo, conciliar Dito vivo-Dito morto, brincadeiras, conversas, estórias... Mas, o presente é o verdadeiro lugar da existência. Crespi, mostra que a recusa ao cotidiano, ao presente, se deve a um medo profundo em aceitar a insolubilidade das contradições e isto nos põe a espera de uma redenção final. Aí se estrutura o que ele chama de “Lógica da Espera” em contraposição à “Lógica da Atenção”: “Se o presente mostra uma situação inconciliável (e como não poderia mostrar?) a espera volta as costas ao presente: ela olha para o futuro no qual ela projeta a imagem de uma conciliação final (céu ou sociedade perfeita). Mas, curiosamente a espera guarda sempre também um olhar atrás, no passado, no qual ele paralelamente projeta uma imagem de unidade original. Esta imagem da origem constitui, com efeito, a garantia da promessa de libertação projetada no futuro.”
Miguilim se apega às palavras da Mãe, enquanto lavava o corpo de Dito. Talvez porque aquele momento em que ela as pronunciava, embora fosse “O ponto mais fundo da dor,” a transição da vida para a morte era ainda nebulosa. Dito, para Miguilim, ainda não tinha passado de doente a morto. O olhar no passado, como lugar da inteireza, inspira o desejado milagre do retorno, do não havido. A “Lógica da Atenção”, para Crespi, “Não pensa em termos de uma solução final de contradições, ela busca gerenciar estas mesmas contradições através de soluções parciais e temporárias de tipo pragmático e não totalizante”. Mas, Miguilim ia precisar viver outras experiências, de um tempo de luto para poder cicatrizar as feridas.
Mãitina era a pessoa com quem ele sempre podia falar do Dito e chorarem juntos. É dela a idéia: “Escondido, escolheram um recanto, debaixo do jenipapeiro, ali abriram um buraco, cova pequena. De em de, camisinha e calça do Dito, furtaram, para enterrar, com brinquedos dele. Mas Mãitina foi remexer em seus guardados, trouxe uns trens: boneco de barro, boneco de pau, penas pretas e brancas, pedrinhas amarradas com embira fina; [...] Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos. Tudo se enterrou, reunido com as coisinhas do Dito. Retaparam com terra, depois foram buscar as pedrinhas lavadas do riacho, que cravaram no chão, apertadas, remarcando o lugar; [...] Era mesma coisa se o Dito estivesse depositado ali, e não no cemiteriozinho, longe, no Terentém.” A cumplicidade entre eles é protetora. Só eles compartilhavam o segredo e Miguilim furtava cachaça para Mãitina. Dito agora está presente. Se nada pode voltar a ser como antes, se o milagre de reviver Dito não acontece, pelo menos há um lugar para ele no Mutum, escondido pelo ritual de Miguilim e Mãitina, protegendo-os da ausência, do desamparo, da crueldade da morte, e das relações hostis entre os outros vivos. É próprio do rito preservar a continuidade do vivido.
De volta à labuta que lhe era imposta, Miguilim adoece. A saúde dele era mesmo fraca e a isto se somam os maus-tratos. É grave o seu estado de fraqueza. O Pai já não grita mais, não ralha, só chora, temendo que mais um filho morresse e procura fazer as vontades de Miguilim. Dias ele passa sem se dar conta do que acontece à sua volta. Numa manhã todos choram e gritam, chamam pela Mãe. “Pai fugiu para o mato, Pai matou o Luisaltino!...” Do fundo da doença Miguilim soluça , grita e Vó Izidra tenta acalma-lo: “Vamos rezar, Miguilim, deixa os outros, eles se arrumam; esquece de todos: você carece é de sarar!” Vó Izidra cuidou do neto, abençoou-o, trocou o cordão das medalhinhas que ele tinha no pescoço e que estavam encardidos e sujos de doença, abraço-o e despediu-se. Ia embora para nunca mais voltar. O Pai se enforcara com um cipó. Encontrado morto no cerrado. “Mãe veio, se ajoelhou, chorava tapando a cara com as duas mãos; - ‘Miguilim, não foi culpa de ninguém, não foi culpa...”[...] perdeu a cabeça depois do que fez, [...] de lá mesmo foi levado para o Terentém...” Miguilim agora, depois de tantos infortúnios, se avizinha da “Lógica da Atenção”. Valoriza o cotidiano com toda a sua carga de imprevisibilidade... desencanto? Ou um “niilismo terapêutico” ? Este niilismo é um tipo de descrença nietzschiana que nada tem de agressiva ou auto-destrutiva. O ‘pensamento frágil’ seria um pensamento de um homem mais humano, mais sensível (próximo ao supre-homem de Nietzsche) mais educado às nuanças e menos aos grandes combates do destino.
Quando o desejado não tem chance de chegar e há o desencanto pela espera inútil, quando se acredita que as energias foram gastas em vão... pode surgir o inesperado... Os muitos ardis do deus Dionísio! E Miguilim vai passar a ver o mundo com outros olhos...
Um homem chega a cavalo, usava óculos, era o doutor José Lourenço que vinha de Curvelo: “Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista?" E Miguilim experimenta os óculos que o doutor tira do próprio rosto e coloca em Miguilim É um deslumbramento! Miguilim agora vê o que não via antes! “a pele da terra”, as coisas pequenas...
O doutor vai levar Miguilim para mandar fazer uns óculos, menores, adequados para o tamanho dele. Voltou no dia seguinte e as roupas e matula já estavam aprontadas. Miguilim, com os óculos do doutor, mais uma vez olhou para tudo o que pôde, o gado, os matos, os buritizais... Ah! O Mutum era bonito! Devolveu os óculos para o doutor, despedidas... “Um soluçozinho veio. O Dito e a Cuca Pingo-de-Ouro. E o Pai. ‘Sempre alegre, Miguilim... sempre alegre, Miguilim’...”
Outra partida, agora diversa de quantas tinha ele vivido, também dolorosa, mas de outro tipo de dor... “Toda saudade é uma espécie de velhice.” Miguilim, já não era apenas um menininho sofrendo a orfandade, a indigência, e o abandono. “Ah, esta vida, às não vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande.”




Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns! O texto dá uma idéia bastante clara de todo o desenrolar da estória “Campo Geral”, com grande riqueza de detalhes.
Mesmo o leitor que desconhece totalmente a obra e o estilo literário de Guimarães Rosa, é introduzido no universo do “Miguilim”, envolvendo-se imediatamente com o ambiente da estória, os tipos humanos que a povoam, seus dramas individuais e seus modos rústicos de vida.