sábado, 26 de abril de 2008

Sorôco e a loucura - a estranheza -1

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Sorôco e a loucura – a estranheza -1


Sorôco, sua mãe, sua filha”

O vagão que leva a mãe e a filha de Sorôco “não era um vagão comum de passageiros [...] num dos cômodos as janelas sendo de grades feito as de cadeias para presos”. Só a aparência do carro-vagão já diz da estranheza desta viagem, do desconhecido que se apresenta. Nele não vão passageiros. Produzido longe da pequena cidade, diferente de tudo que parecesse familiar, “sem piedade nenhuma.” Objeto assustador, que além de estranho vai servir para um triste fim necessário - transportar as duas loucas até o manicômio de Barbacena. Elas não vão sozinhas: “iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas [...] também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Elas não haviam de dar trabalhos”.
Sorôco, naquele dia, não calçava as alpercatas, mas “calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua melhor roupa”.
Na descrição do cenário, nas atividades das personagens, assim como no comportamento cauteloso, quieto, em suspensão, de Sorôco, “E estava reportado e atalhado, humildoso”, nos seus trajes, há um certo esmero, a demonstrar que não se trata de uma situação trivial. É um acontecimento que atravessa a tênue fronteira do privado para o público. O drama de Sorôco, com a velha mãe e única filha enlouquecidas, é da ordem do privado. Todavia, numa cidade interiorana, pequena; pela pobreza de Sorôco que precisou contar com a ajuda do governo que pagou tudo, mandou o carro para conduzir as duas mulheres, o fato se torna público. A partida das duas loucas é um acontecimento social. A pequena multidão, todavia, se comporta respeitosa: “As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o movimento”. É preciso que se falasse com sensatez, que o saber, com mais domínio da situação, fizesse a todos e cada um, ver que são curiosos, não loucos. Que participam de um evento, mas não fazem o espetáculo, é gente curiosa que se solidariza com Sorôco, mas não são como “elas”. Esta demarcação é protetora, resguarda o nicho de sanidade e a diferencia da “loucura”. A dor daquela cena precisa ser afastada. Lembremos-nos dos velórios onde piadas são contadas e ouvidas com agrado a boca pequena, se ri e, entre um ou outro comentário sobre a nobreza do morto, fala-se de trivialidades, bebe-se, come-se e, assim, os vivos, os “saudáveis” se colocam no contra-fluxo da tristeza. A comensalidade aí se põe como um rito de passagem que agrega, transitoriamente, os participantes e os separa do luto, como uma ilha de organizada normalidade.
Precisar da ajuda demarca a indigência, a necessidade, demonstra que Sorôco é um deserdado do sertão, sem acesso a cidadania. Por outro lado, faz do “governo” o grande pai caridoso a socorrer os necessitados. A “ajuda” não passa de esmola, nem mesmo um arremedo de justiça social e torna o hipo-suficiente ainda mais humilhado.
Ocorre, a partir daí, um certo planejamento das ações que culminarão no transporte das duas mulheres para esta longa viagem. As matulas, os acompanhantes, pessoas de tino, obsequiosas e desenvoltas, a pequena comunidade á espera da partida das loucas, respeitosa e unida, demonstra uma ordem planejada, em contraposição à desordem mental da mãe e da filha de Sorôco. A chegada dos três, Sorôco e as duas mulheres, lembra “um casório”, tal a formalidade da cerimônia, mas tem a tristeza de um enterro. Aí se pode perceber uma ritualística. O rito é o mito posto em movimento. Os comportamentos ritualísticos têm por base crenças míticas. Há toda uma gramática, que varia de uma para outra cultura e que disciplina nossos comportamentos frente às ameaças simbólicas, que determina comportamentos de fuga, nojo, medo, repulsa, entre outros e nos deixa muito pouco espaço de liberdade de escolha. Na dinâmica das ações rituais, o mito se atualiza, se põe em cena. É um rito de passagem o que se pode detectar na partida, em qualquer partida ou chegada. Nesta situação específica a ritualística de desagregação se coloca com toda a sua dimensão de dor. Qualquer movimentação, particularmente uma movimentação geográfica, física, que afasta o indivíduo de uma área conhecida para uma desconhecida, ou não tão conhecida como aquela que ele deixa, cria uma situação especial de flutuação ou de “margem”. quanto ao embarque e desembarque. Sorôco vem entre elas, cada uma de um lado, de braços dados, como elos de uma corrente, corrente num momento de “margem” que em breve será desagregada, também uma simbologia de um “casório”, mas que é um “enterro”. Recorremos aos rituais de ordem como forma aliviadora da angústia da finitude. O planejamento confere uma ordem mínima a tudo aquilo que está fugindo do controle. Pode-se perguntar na presente situação descrita no conto: A que controle? Não se está aqui falando de uma ordem social ou familiar usual, partilhada na “normalidade” da vida cotidiana das pessoas e das famílias. Há uma “ordem” possível do acostumado, da trivialidade, do vivido pela família Sorôco, que foi deteriorando-se até o insustentável. Mas, mesmo nesta situação, havia uma certa espacialidade partilhada, um convívio que, se não prazeroso, se impunha pela necessidade e pela falta de outras opções.
A atual situação é de ruptura e todos os presentes sabem que não é a solução do problema. Também não é um enigma. Se o fosse, poderia ensejar alguma expectativa. A mãe e a filha de Sorôco – as loucas - vão para um manicômio, para um depósito de loucos, não para uma instituição de tratamento. Não há esperança de que, um dia, elas voltem, muito menos de que voltem mais saudáveis. Como toda ruptura, corta laços, joga o ser humano no desconhecido, muitas vezes no insólito. Mesmo quando o que se corta é um laço indesejável, sempre é assustador, desestabilizante. Para elas pode não haver consciência clara do desconhecido. Talvez elas só se atenham às suas fantasias, desorganizadas para os ditos “normais”. Para Sorôco, o não mais partilhar do convívio com elas é ambivalente. Há dor misturada ao alívio, agravada pela certeza de que elas não estarão em estado melhor do que estão, só segregadas, excluídas, afastadas dos “normais”, logo elas que já têm um mundo próprio onde se escondem. A filha “tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, [...] o ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis [...] Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam juntas, não paravam de cantar”. O canto desconexo, no tom e nos dizeres, primeiro da moça. Depois a ela se junta a velha. A cantiga é a mesma, como um coro incompreensível. O que cantam carece de sentido aos ouvintes, cantam para elas mesmas. Habitam, ambas, um universo paralelo, alienígena, inumano, de acesso impossível. O código é outro, intransitivo, diverso.
À demonstração explícita dos transtornos das duas mulheres as pessoas ajuntadas reagem com um constrangimento respeitoso: “Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso.” A estranheza é incômoda, pois ameaça a ordem constituída. A ordem mantém o liame que, às vezes, mais do que unir estabelece o cerco, a prisão. Mas que seria de nós, pobres humanos racionalistas, sem as prisões que construímos para nos proteger? – Frágeis “Simões Bacamartes”, seres extra murus, sem referências, ameaçados! A desordem, na loucura das duas mulheres, põe a nu esta ameaça. A ordem precisa se mostrar então presente para fazer frente ao perigo da alteridade. Sanidade x enfermidade, razão x loucura se põem como pólos de enfrentamento.

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