quinta-feira, 8 de maio de 2008

Sorôco, sua mãe, sua fiulha - a estranheza da loucura 2

Para a viagem das duas loucas, até o manicômio de Barbacena, observa-se uma real preocupação com as medidas práticas como segurança, alimentação, boas condições para a longa viagem, todavia, sob os obséquios e cuidados técnicos se esconde o medo da diversidade, do diferente e de sua alteridade. Separar o “doente” é uma medida social higienista. “O propósito principal, então, das crenças e práticas higiênicas é fixar modelos para o comportamento das pessoas, impedindo que transgridam limites e desorganizem a ordem simbólica[...] os microorganismos patogênicos ameaçam mais a vida social que a vida orgânica, e, são objeto de ritos purificatórios.” (Rodrigues,1975, p.134) Daí a necessidade de que a ordem assuma seu papel hegemônico, marque presença preponderante e rechace a desordem. Isto faz o diferente ainda mais diverso e, conseqüentemente, objeto de exclusão. “Não é improvável que possamos encontrar um paralelismo acentuado entre a tendência a identificar, no corpo humano, o ‘vil’ e o ‘nojento’ com o ‘inútil’, e a atitude pragmática do sistema capitalista, que procura valorizar no corpo o que tem de aproximado aos instrumentos e ferramentas.” (Rodrigues, 1975,p. 159)
É esperado, na apreciação de uma melodia que haja uma combinação de sons captado pelo ouvido humano como uma sensação agradável. Tal sensação deve elevar o espírito, conduzir ao êxtase, através da alegria ou da catarse. Quando a melodia une-se à palavra estabelece-se um sentido que precisa ser compreendido, vale dizer, exige coerência para que o receptor possa decodificá-la. A cantiga da filha “não vigorava certa nem no tom nem no dizer das palavras – o nenhum”. A avó segue a cantiga da neta, “que ninguém não entendia”. É um desafio não intencional, mas que, a contragosto, se põe entre elas e povo circundante, uma comunicação que não se decodifica. Para os presentes a cantiga era “o nenhum”, a ausência de qualquer possibilidade de laço social, fora de qualquer alcance.
“A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada de tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam”. (p.14) As duas loucas se diferem dos demais também pelos trajes. Vestem-se e têm comportamentos sui generis, chamam atenção, embora não quisessem “dar-se em espetáculo”. A velha trajando-se mais discreta, toda de preto, com seu chalé preto, mas “batia com a cabeça, nos docementes.” Ambas portam no corpo, quer pelas indumetárias, quer pelo comportamento, aquilo que os gregos definiram como estigma. “Sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresenta”. Goffmam 1963, p.11) A filha tem um ar sobrenatural “que nem os santos e os espantados”. Esta última traz nas vestes “matéria de maluco”, trapos, tiras, roupa sobre roupa, panos e papéis amarrados ao corpo. Cabelos desgrenhados que todos reconhecemos como assinatura da sandice!
Diversas no trajar, diversas na idade, todavia se assemelhavam. Unidas neste padecimento comum, alardeiam a alteridade da doença mental. O rosto da moça é a contradição posta: “a cara dela era um repouso estatelado”. De uma loucura que subverte, seu rosto atônito é uma máscara de não-presença. Ela não quer se dar em espetáculo, porque não está ali. Quais seriam as “outroras grandezas impossíveis”? Quem poderia responder? Senão alguém também mergulhado nestas águas, como a avó? Quem sabe vem daí esta semelhança entre as duas? Daí, quem sabe, este olhar da avó de um “amor extremoso”, este “encanto de pressentimento muito antigo” que todos viram e não entenderam?
“De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi-se sentar no degrau da escadinha do carro. – ‘Ela não faz nada, seo Agente...’ – A voz de Sorôco estava muito branda: - ‘Ela não acode, quando a gente chama...” (p.15) Elas são “doidas mansas”, Sorôco sabe disto. Necessárias as precauções de segurança? Grades nas janelas do vagão? Para impedí-las de quê? De cantar? Ou para delimitar o estigma da desordem? A falsa segurança contra a ameaça simbólica! .
“ Agora mesmo, a gente só escutava era o arcoçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava [“...] A tristeza do canto incompreensível podia doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, mas pelo antes, pelo depois”. A dor que se derrama no canto incompreensível agora pode ser de todos, sem marca de razão... Não é preciso “jurisprudência de motivo nem lugar” (p.15) Esse por-se em comum é a vivência do trágico, no sentido grego, dionisíaco. “Dionísio é, efetivamente, uma espécie de interposição entre a natureza e a cultura, ao permitir, ao mesmo tempo, o acesso ao instintual e o aprofundamento da socialidade” (Maffesoli,1985, p.140) É um estado de “religare” um “cimento social” que se mostra em toda sua potência e vitalidade. Já não é só uma chusma de gente, mas uma socialidade que descobre a forma de enfrentar coletivamente o desafio do limite e a dor é agora de todos.
O embarque é rápido que Sorôco nem espera sumir, nem olha, é uma imagem desolada, uma tristeza esmagadora... “Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso” Sorôco é a imagem da desolação muda,“oco”. Esvaziado como quem parou de ser. Há uma emoção de lagrimejamento nos presentes “vistas neblinadas”. As palavras que buscam consolar estão soltas ao vento, não há consolo possível nos ditos, mas, nos não ditos...”De repente, todos gostavam demais de Sorôco.” Percorre o âmago daquela comunidade um estado de ser-estar-junto, nunca dantes suspeitado. Um estado proxêmico de coesão que não é da ordem da consangüinidade, nem da pena, mas do religare, da proxemia. Ali, naquele momento e lugar, em face do evento que foi presenciado e das circunstâncias em que se deu, estabelecem-se relações afetivas que os seres humanos desenvolvem a partir de um território de pertencimento, seja este território espacial ou simbólico. Uma “socialidade de base” como denomina Maffesoli, “o querer-viver espontâneo que, através de representações imagéticas, reordena o tempo e o espaço, permitindo o enfrentamento coletivo do trágico do tempo que passa e a angústia da finitude.” (1988,p.113) Um estado de ser-estar-junto, sem obrigatoriedade, sem finalidade disciplinada, pela solidariedade orgânica, imposta pelas rotinas da vida cotidiana, em posições moralista de um dever-ser. (Durkheim,1986) Mas sim, manifestada no próprio ato de pertencimento, uma sensibilidade coletiva. “essas redes de amizade, que não têm outra finalidade senão reunir-se sem objetivo, sem projeto específico e que cada vez mais compõem a vida quotidiana dos grandes conjunto” (Maffesoli,1987,p.35)
Sorôco está voltando para casa como se fosse para longe, sem a mãe e sem a filha, mas com toda a cidade que o acompanha. As palavras de conforto são dispensáveis... o canto as substitui: “ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a mesma cantiga, mesma de desatino, que as duas tinham cantado [...] E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, [...] os mais de detrás quase corriam, ninguém deixasse de cantar” (p.16) Mais, muito mais que de dó de Sorôco, o povo canta com ele, a mesma canção destrambelhada das duas loucas. Como um coro de ditirambos que, no teatro grego clássico, declamavam e cantavam, em delírio, para louvor do deus Dionísio. Ali Sorôco é o cantor principal, o corifeu, acompanhado de todas as outras vozes, “ninguém deixasse de cantar. “o coro como uma muralha viva de que se cerca a tragédia a fim de se separar do mundo real e salvaguardar seu domínio ideal e sua liberdade poética [...] o coro ditirâmbico é um coro de transformados que perderam totalmente a lembrança de seu passado civil” .(Nietzsche, p.59) “O ditirambo “oferece o espetáculo de uma comunidade de atores inconscientes que se contemplam a si mesmos, metamorfoseados entre os outros” (p.66) Nesse canto de possessão dionisíaca, todos se irmanam para “levar Sorôco para a casa dele[...] ia até aonde que ia aquela cantiga” (p.16). Não importa mais que a cantiga seja “nenhum”, não tenha tino, nem seja compreendida – ela é agora compartilhada. Há uma irresistível identificação entre todos os que cantam com Sorôco, numa sabedoria dionisíaca do enfrentamento dos limites, como um retorno à natureza. Há uma real preocupação com as medidas práticas como segurança, alimentação, boas condições para a longa viagem, todavia, sob os obséquios e cuidados técnicos se esconde o medo da diversidade, do diferente e de sua alteridade. Separar o “doente” é uma medida social higienista. “O propósito principal, então, das crenças e práticas higiênicas é fixar modelos para o comportamento das pessoas, impedindo que transgridam limites e desorganizem a ordem simbólica[...] os microorganismos patogênicos ameaçam mais a vida social que a vida orgânica, e, são objeto de ritos purificatórios.” (Rodrigues,1975, p.134) Daí a necessidade de que a ordem assuma seu papel hegemônico, marque presença preponderante e rechace a desordem. Isto faz o diferente ainda mais diverso e, conseqüentemente, objeto de exclusão. “Não é improvável que possamos encontrar um paralelismo acentuado entre a tendência a identificar, no corpo humano, o ‘vil’ e o ‘nojento’ com o ‘inútil’, e a atitude pragmática do sistema capitalista, que procura valorizar no corpo o que tem de aproximado aos instrumentos e ferramentas.” (Rodrigues, 1975,p. 159)
É esperado, na apreciação de uma melodia que haja uma combinação de sons captado pelo ouvido humano como uma sensação agradável. Tal sensação deve elevar o espírito, conduzir ao êxtase, através da alegria ou da catarse. Quando a melodia une-se à palavra estabelece-se um sentido que precisa ser compreendido, vale dizer, exige coerência para que o receptor possa decodificá-la. A cantiga da filha “não vigorava certa nem no tom nem no dizer das palavras – o nenhum”. A avó segue a cantiga da neta, “que ninguém não entendia”. É um desafio não intencional, mas que, a contragosto, se põe entre elas e povo circundante, uma comunicação que não se decodifica. Para os presentes a cantiga era “o nenhum”, a ausência de qualquer possibilidade de laço social, fora de qualquer alcance.
“A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada de tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam”. (p.14) As duas loucas se diferem dos demais também pelos trajes. Vestem-se e têm comportamentos sui generis, chamam atenção, embora não quisessem “dar-se em espetáculo”. A velha trajando-se mais discreta, toda de preto, com seu chalé preto, mas “batia com a cabeça, nos docementes.” Ambas portam no corpo, quer pelas indumetárias, quer pelo comportamento, aquilo que os gregos definiram como estigma. “Sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresenta”. Goffmam 1963, p.11) A filha tem um ar sobrenatural “que nem os santos e os espantados”. Esta última traz nas vestes “matéria de maluco”, trapos, tiras, roupa sobre roupa, panos e papéis amarrados ao corpo. Cabelos desgrenhados que todos reconhecemos como assinatura da sandice!
Diversas no trajar, diversas na idade, todavia se assemelhavam. Unidas neste padecimento comum, alardeiam a alteridade da doença mental. O rosto da moça é a contradição posta: “a cara dela era um repouso estatelado”. De uma loucura que subverte, seu rosto atônito é uma máscara de não-presença. Ela não quer se dar em espetáculo, porque não está ali. Quais seriam as “outroras grandezas impossíveis”? Quem poderia responder? Senão alguém também mergulhado nestas águas, como a avó? Quem sabe vem daí esta semelhança entre as duas? Daí, quem sabe, este olhar da avó de um “amor extremoso”, este “encanto de pressentimento muito antigo” que todos viram e não entenderam?
“De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi-se sentar no degrau da escadinha do carro. – ‘Ela não faz nada, seo Agente...’ – A voz de Sorôco estava muito branda: - ‘Ela não acode, quando a gente chama...” (p.15) Elas são “doidas mansas”, Sorôco sabe disto. Necessárias as precauções de segurança? Grades nas janelas do vagão? Para impedí-las de quê? De cantar? Ou para delimitar o estigma da desordem? A falsa segurança contra a ameaça simbólica! .
“ Agora mesmo, a gente só escutava era o arcoçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava [“...] A tristeza do canto incompreensível podia doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, mas pelo antes, pelo depois”. A dor que se derrama no canto incompreensível agora pode ser de todos, sem marca de razão... Não é preciso “jurisprudência de motivo nem lugar” (p.15) Esse por-se em comum é a vivência do trágico, no sentido grego, dionisíaco. “Dionísio é, efetivamente, uma espécie de interposição entre a natureza e a cultura, ao permitir, ao mesmo tempo, o acesso ao instintual e o aprofundamento da socialidade” (Maffesoli,1985, p.140) É um estado de “religare” um “cimento social” que se mostra em toda sua potência e vitalidade. Já não é só uma chusma de gente, mas uma socialidade que descobre a forma de enfrentar coletivamente o desafio do limite e a dor é agora de todos.
O embarque é rápido que Sorôco nem espera sumir, nem olha, é uma imagem desolada, uma tristeza esmagadora... “Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso” Sorôco é a imagem da desolação muda,“oco”. Esvaziado como quem parou de ser. Há uma emoção de lagrimejamento nos presentes “vistas neblinadas”. As palavras que buscam consolar estão soltas ao vento, não há consolo possível nos ditos, mas, nos não ditos...”De repente, todos gostavam demais de Sorôco.” Percorre o âmago daquela comunidade um estado de ser-estar-junto, nunca dantes suspeitado. Um estado proxêmico de coesão que não é da ordem da consangüinidade, nem da pena, mas do religare, da proxemia. Ali, naquele momento e lugar, em face do evento que foi presenciado e das circunstâncias em que se deu, estabelecem-se relações afetivas que os seres humanos desenvolvem a partir de um território de pertencimento, seja este território espacial ou simbólico. Uma “socialidade de base” como denomina Maffesoli, “o querer-viver espontâneo que, através de representações imagéticas, reordena o tempo e o espaço, permitindo o enfrentamento coletivo do trágico do tempo que passa e a angústia da finitude.” (1988,p.113) Um estado de ser-estar-junto, sem obrigatoriedade, sem finalidade disciplinada, pela solidariedade orgânica, imposta pelas rotinas da vida cotidiana, em posições moralista de um dever-ser. (Durkheim,1986) Mas sim, manifestada no próprio ato de pertencimento, uma sensibilidade coletiva. “essas redes de amizade, que não têm outra finalidade senão reunir-se sem objetivo, sem projeto específico e que cada vez mais compõem a vida quotidiana dos grandes conjunto” (Maffesoli,1987,p.35)
Sorôco está voltando para casa como se fosse para longe, sem a mãe e sem a filha, mas com toda a cidade que o acompanha. As palavras de conforto são dispensáveis... o canto as substitui: “ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a mesma cantiga, mesma de desatino, que as duas tinham cantado [...] E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, [...] os mais de detrás quase corriam, ninguém deixasse de cantar” (p.16) Mais, muito mais que de dó de Sorôco, o povo canta com ele, a mesma canção destrambelhada das duas loucas. Como um coro de ditirambos que, no teatro grego clássico, declamavam e cantavam, em delírio, para louvor do deus Dionísio. Ali Sorôco é o cantor principal, o corifeu, acompanhado de todas as outras vozes, “ninguém deixasse de cantar. “o coro como uma muralha viva de que se cerca a tragédia a fim de se separar do mundo real e salvaguardar seu domínio ideal e sua liberdade poética [...] o coro ditirâmbico é um coro de transformados que perderam totalmente a lembrança de seu passado civil” .(Nietzsche, p.59) “O ditirambo “oferece o espetáculo de uma comunidade de atores inconscientes que se contemplam a si mesmos, metamorfoseados entre os outros” (p.66) Nesse canto de possessão dionisíaca, todos se irmanam para “levar Sorôco para a casa dele[...] ia até aonde que ia aquela cantiga” (p.16). Não importa mais que a cantiga seja “nenhum”, não tenha tino, nem seja compreendida – ela é agora compartilhada. Há uma irresistível identificação entre todos os que cantam com Sorôco, numa sabedoria dionisíaca do enfrentamento dos limites, como um retorno à natureza.

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