terça-feira, 27 de maio de 2008

"A terceira margem do rio" parte 2

Também em “A terceira margem do rio” a matéria da tragédia é a condição humana, que conduz os demais elementos do conto. Os outros; a filha, já casada e agora com um bebê, o irmão e por fim a mãe, desistem, fogem, refugiam-se em outras cidades, mas o filho narrador permanece. A ausência preenche toda a vida deste filho. “Eu permaneci, com as bagagens da vida” [...] “Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos.” (p.29) Para os familiares que se foram para outros lugares a estranheza pode ter sido domesticada, atenuada, afastados que se puseram daquela presença/ausência incômoda. Podem ter integrado, da maneira possível, o drama familiar nas próprias vidas, mitigando a dor e a incompreensão. “A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade.”(p.29)
Não há, todavia, nem consolo, nem luto e nem esquecimento para este filho, pois o morto em vida é insepulto e as perguntas continuam sem a resposta apaziguadora. Ao invés da clareza de um diagnóstico se põe a obscuridade do enigma que barra qualquer tentativa de significação renovadora. Só há o silêncio da permanente lembrança, os não-ditos, as suposições, agora já esmaecidos. Pelo cansaço já não se busca o entendimento mas, uma acomodação, sempre marcada pelo desconforto, torna-se concreta.
Considerando que o mundo cultural humano é constituído de convenções simbólicas, na busca de explicações de significados, a racionalidade criou lógicas binárias. Ou se é, ou não se é, e uma terceira possibilidade é excluída. Dentro desta lógica as coisas e ações passam a ser classificadas como pertencentes ou não pertencentes Mesmo quando os marcadores que as delimitam não estão concretamente presentes, a eficácia simbólica já está estabelecida e prescinde desta concretude.
Assim, se estabelecem as fronteiras, sejam elas físicas, como as aduanas, de um país para outro, levantar muros para circundar as residências, definir lugares diferentes destinados a alimentação e dejetos; quer sejam elas fluidas, como a proibição de penetrar num dado recinto destinado a um ritual, tocar um objeto sagrado, tirar os sapatos para entrar em alguns lugares, lavar-se após vir de um enterro... Diante de tais valores, expressos nos comportamentos humanos e variados de cultura para cultura, deparam-se, os humanos, no entanto, com dificuldades. Toda vez que se estabelecem categorias elas comportam algumas coisas e excluem outras. A questão é o que esta divisão determina. Se a lógica é binária, aquilo que é excluído precisa se integrar em outra categoria. Mas, e quando algum elemento não é totalmente excluído nem integrado? Ou quando ameaça ocupar dois lugares ao mesmo tempo? Quando se comportam como polivalentes e desafiam o sistema classificatório? As linhas das classificações podem até apresentar uma certa flexibilidade mas, não pode afrouxarem-se em demasia sem correr o risco de se desfazem e tornar a classificação caótica e inútil.
Os exemplos vão ao infinito, mas podemos enumerar alguns. Os adolescentes, nem crianças, nem adultos; os lugares de embarque e desembarque, tais como rodoviárias, estações de trens, portos, que são locais de chegada e de partida; os empregados domésticos, participam da privacidade da família, mas são estranhos a ela; as esquinas, lugares dos rituais; a meia noite, nem dia, nem noite.
Pela mesma razão de embaralhamento, indefinição, os monstros e animais de bestiários são sempre apresentados como reuniões de estranhezas, compostos de diversas partes de outros viventes; focinho de porco, asas de morcego, pés de bode... O lobisomem, o diabo, os sátiros, companheiros do deus Dionísio, marcavam sua estranheza pela morfologia, eram homens com pernas de bodes. A impossibilidade de enquadramento, em categorias binárias, faz destes elementos suspeitos e potencialmente perigosos. Atribui-se a eles “mana”, um poder secreto, singular, insólito e perturbador, presença de algo diferente do natural. Pode o “mana” “imantar” objetos e indivíduos e lugares, conferindo-lhes poder de “eleito”, de alguém ou algo especial que se destaca dos demais pelos seus feitos, grandiosos ou estravagantes. O “mana” cria um comportamento social de respeito, em face àquele que o possui e, pelo caráter inexplicável das ações, também suspeito.
Ora, o pai barqueiro apresenta um comportamento inegavelmente estranho, onde se pode reconhecer o “mana”. As hipóteses encaminham suspeitas de pagamento de promessa, loucura, doença contagiosa e “feia” – a lepra e de enviado especial – um Noé. Em todas elas o homem ultrapassou seus limites, lembremo-nos de “O pagador de promessa” e, como tal, é um herói trágico, no sentido que lhe atribuiu os gregos antigos.
A tragédia tem suas raízes num passado e num lugar distantes, mais precisamente no século V a.C. do helenismo, o chamado século de Péricles, época das tiranias áticas e dos regimes fortes. È ali que a tragédia surgiu como gênero teatral de uma dupla origem: cívica e religiosa. O terno tragédia é derivado de “tragos” que significa bode, daí tragédia ser “canto de bodes”, “tragos” = bode + “oide”= canto. Parece que havia, em princípio, um grupo de pessoas que portavam máscaras de bodes e que representavam estar em estado de delírio. As representações trágicas incluíam-se nas festas dionisíacas, juntamente com as procissões.
As questões que as tragédias gregas levavam até a cena eram sempre sobre a condição humana, seus conflitos, seus dilemas e suas paixões, daí a sua atualidade. Põem em jogo as contradições que são a marca do viver trágico. Com as contradições descortinam-se os enigmas e as interrogações a respeito do homem – este ser incompreensível, culpado e inocente, capaz de dominar a natureza e, ao mesmo tempo ser tão frágil, tão inseguro, incapaz de se definir. Na encenação das tragédias o que se passa é mais que uma encenação, mas trata-se de um ritual litúrgico, onde são celebrados os mistérios da vida humana. É posta em cena a natureza humana, com suas relações mundanas e suas interrogações metafísicas.

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