segunda-feira, 19 de maio de 2008

"A terceira margem do rio" parte 1

Saúde, padecimento e morte em GUIMARÃES ROSA
"A terceira margem do rio” ( Primeiras estórias)

Ana Lúcia Magela
A narração do conto é na perspectiva do filho. Ele relata a partida do paicumpridor, ordeiro e positivo [...] só quieto”, numa canoinha que mandara fazer, para ficar por anos no meio do rio; numa “terceira margem”: “Sendo que se ele não se lembrava mais nem queria saber da gente, por que, então não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não encontrável? Só ele soubesse”. (p.30) “Seja que quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me-diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação (meu grifo) ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais”. (p. 31) O mistério se coloca aqui como o insondável absoluto, daí guardar íntima relação com o sagrado. Dele não se pode aproximar pelas explicações racionalistas. Toda tentativa de hipótese explicativa sempre será reducionista. O mistério é uma concha fechada, hermética, lugar onde a razão não consegue lançar nenhum raio de luz esclarecedor.
Mas, há tentativas de explicar comportamento tão esdrúxulo: “Todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira [...] Sou doido? Não. Na nossa casa a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos não se condenava ninguém de doido. Ou, então, todos.” (p.31) “Só uns achavam o entretanto de poder ser também pagamento de promessa, ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele” (p.28) “na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim do mundo, diziam que o nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, portanto, a canoa ele tinha antecipado”; (p.31)
A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia”. (p.28)
Diante do absurdo incompreensível, tentam-se as medidas práticas que, acreditavam, demovedoras de tão infeliz intento: “o pessoal nosso experimentou de ascender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se clamava”. (p.28) A mãe encomendou os esconjurados do padre; os soldados, com apelo de força; foram até mesmo os “homens do jornal” que tentaram fotografar... Nada... “não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão”. (p.29)
O por que do intento? A pergunta sempre aberta, busca invadir a ordem do mistério mas, nenhuma mediação racional explicativa satisfaz. O que se pode é andar em círculos, ao redor deste enigma, buscando, cada vez, se aproximar mais, sem jamais cercá-lo, porque ele sempre vai escapar.
A idéia mítica encontra guarida pela vizinhança do mistério: Tão diversa a atitude de um pai “ordeiro e cumpridor”, na vida do dia-a-dia, nos faz perguntar que contradições vivia este homem, para deixar a família e imobilizar-se nesta terceira margem de um rio? A especulação de que seria ele um Noé, pré-avisado de um dilúvio, reunindo em si toda uma fadiga cósmica, desencantado e desejoso de um repouso absoluto, numa morte em vida, nos conduz a uma possibilidade compreensiva do mito. Se o dilúvio abriu caminho para uma recriação e regeneração da humanidade, seria este intento uma forma de regresso ao útero da natureza, o retorno a um universo caótico e pré-cosmico, embrionário, para um enfrentamento do limite, como uma gestão da morte?
O valor dos mitos é confirmado nos rituais. Os mitos sempre incorporam o paradoxo, nada é harmônico, há sim uma permanente busca da harmonização, sempre fugidia, uma “harmonia-conflitual” onde, integrar a morte no cotidiano é uma forma contraditória de enfrentá-la.
Para vários povos antigos o tempo primordial “illud tempus”, em que pela primeira vez o mundo passou a existir, pode ser recuperado, vale dizer, recomeça como tempo sagrado. Reatualizar o ritual de um começo está presente em todos os calendário sagrados, mesmo nas sociedades contemporâneas.
A paralisia do conto é marcada pela circularidade. A presença/ausência é impossível de ser esquecida. “E nunca falou mais nele. Só se pensava. Não de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para despertar de novo, de repente com a memória, no passo de outros sobressaltos.” (p.30) O pai nem parte de vez, nem volta. Fica no estar sendo, num presente eterno e absurdo. A dimensão da estranheza é prolongada, interminável, mesmo que não se fale mais do pai, não se busque mais explicar a estultice do comportamento dele, também dele não se esquece. É o que pode caracterizar o rito de passagem em sua fase de “margem”, vale dizer, flutua entre dois mundos. A “terceira margem” é uma criação literária interessante, pois situa uma transitoriedade que se eterniza e numa “margem” impossível! Onde só existem duas, Guimarães Rosa cria uma absurda terceira.
O antídoto do tempo pode ser encontrado nos atos de voltar-se para dentro, como forma de embargo, de paralisia. Desconectar-se do mundo, das rotinas cotidianas, pode ter relação com as figuras que remontam à vida fetal, como o resgate de um arquétipo ou do atávico. Destacam-se, dentro desta interpretação, as imagens de proteção e interioridade da gruta, da concha, do ovo, onde se pode ver Alice no país das maravilhas, Gúliver, O Pequeno Polegar. O lugar de escolha é “estar dentro de”, a engulição e o encaixe. Ora, na canoa, só cabe o canoeiro, foi encomendada e feita, sob medida, para só comportar um navegador. Na análise destes arquétipos encontra-se a valorização da simbologia do repouso, buscado no berço, no sepulcro, na caverna, na morada nas águas, na descida, na noite e na morte.
Estar sobre as águas e não ir para lugar nenhum, demarca uma intenção desconhecida, mas que pode ser interpretada como de desafio ao tempo, tornar-se senhor dele, ou a eufemização do tempo que passa – não passa para o pai canoeiro, é vago, indefinido, ainda não posto em movimento, como precedendo o cosmo, a inércia, onde vai fundar-se um começo sagrado, uma cosmogonia.
O pai “Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar” (p.28) Já não há como diferenciar o canoeiro da canoa. Continente e conteúdo se amalgamaram ao longo do tempo...

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